Polêmica no ensino jurídico

Em: 02 Maio 2017 | Fonte: Correio Braziliense / Guia Eu Estudante

Enquanto a OAB se opõe à criação de curso tecnológico na área, o MEC autorizou a abertura da graduação em uma faculdade do Paraná. Três centros universitários oferecem turmas a distância no país

Na última semana, o MEC autorizou a oferta da formação em uma faculdade do Paraná, a contragosto da OAB,

que considera que a área deve ser de atuação exclusiva do advogado. Como o tema é alvo de polêmica, a pasta se comprometeu a debater o tema por mais 120 dias antes de aprovar as solicitações de outras instituições de ensino. Atualmente, três centros universitários do país têm turmas em atividade

O curso tecnológico em serviços jurídicos tem sido tema de uma espécie de quebra de braço que envolve o Conselho Nacional de Educação (CNE), instituições de ensino superior e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). De um lado, o órgão colegiado deu, em 15 de fevereiro, parecer positivo para a abertura de graduação na área na Faculdade de Agronegócio de Paraíso do Norte (Fapan), no Noroeste do Paraná. A decisão foi homologada pelo Ministério da Educação (MEC)na última segunda-feira (24), em portaria divulgada no Diário Oficial da União. De outro lado, a entidade de classe dos advogados é totalmente contrária à existência do curso e conseguiu, no dia seguinte, que o ministério voltasse um pouco atrás. A partir do apelo da OAB, em portaria publicada na terça-feira (25), a pasta suspendeu por 120 dias a tramitação de pedidos de autorização de outras faculdades para oferecer essa graduação.

“O MEC quer abrir o diálogo para discutir os termos do curso de tecnólogo em serviços jurídicos”, explicou o ministério em nota enviada por e-mail. A decisão não afeta a liberação concedida à Fapan, que demorou a sair: a faculdade protocolou pedido para a abertura do curso em 1º de agosto de 2013. “Faremos o vestibular em junho, para iniciarmos as aulas em agosto”, comenta o diretor acadêmico da instituição, Marco Aurélio Claudiano da Silva. Com a abertura da graduação, ele espera “contribuir com a formação de profissionais com capacidade para atuar em atividades na área de formação do curso, ou seja, auxiliando escritórios de advocacia, cartórios, tribunais, Ministério Público, empresas e setores de serviços contábeis, assessoramento, informações e pesquisas, recursos humanos e qualquer atividade em que seja necessária a atuação de um auxiliar jurídico”. Marco Aurélio defende que as atribuições de egressos do curso não se confundem com as do advogado nem com as do estagiário de direito. Sólon Caldas, diretor executivo da Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino Superior (Abmes), garante que “não haverá nenhuma invasão à seara do advogado”, pois o curso não permite o exercício da advocacia.

Carlos Vieira
Advogado e servidor público, Eduardo fez o curso de tecnólogo como um complemento para a formação
“A graduação forma alguém que estará apto a auxiliar o advogado e facilitar o dia a dia dele, ao fazer, por exemplo, pesquisa de jurisprudência, levar e buscar processos, prestar serviços cartoriais e notariais”, observa. Conselheiro da Câmara de Educação Superior do CNE, Antônio de Araujo Freitas Junior concorda. “É um trabalho acessório”, diz. Ambos fizeram referência ao paralegal, profissional comum nos Estados Unidos, cuja função é executar tarefas que requerem algum conhecimento sobre a legislação.

O presidente da OAB, Claudio Lamachia, discorda que esse tipo de “auxílio” seja prestado por tecnólogos em serviços jurídicos. “Funções de pesquisa, por exemplo, são inerentes à atividade do advogado, que não pode abrir mão disso. Se tiver um assessoramento, melhor que seja feito por um estagiário”, comenta. Na visão dele, a criação de cursos tecnológicos jurídicos trará ainda uma consequência negativa para os aspirantes a bacharéis em direito.

“Esse profissional vai competir com o estagiário e, por via de consequência, vai retirar a condição de que os estudantes da área possam ter uma boa formação”, acredita. Sebastião Marques Leal, presidente da Associação dos Estudantes Técnicos do Distrito Federal (AET-DF), rebate ao dizer que esse tipo de concorrência não existe, pois o tecnólogo não pode tirar a carteirinha de estagiário de direito (emitida pela OAB) e, portanto, não terá como desempenhar as funções destes.

Visão de estudantes
A AET-DF, criada em 1995, conta com 425 membros e apoia plenamente a homologação do curso da Fapan pelo MEC. “O curso é importante para a qualificação de funcionários de escritórios de advocacia e a geração de empregos na área jurídica”, defende Sebastião. “Agradeço a posição do ministério de não se intimidar com a pressão da OAB. Agora, gostaria que fosse aberto um curso presencial do tipo no DF”, conta. Por enquanto, apenas cursos a distância são oferecidos por aqui.

Natal de Oliveira, 20 anos, e Eduardo Antunes Borba, 34, por exemplo, moram em Brasília e concluíram o curso de tecnólogo em gestão de serviços jurídicos e notariais pelo Centro Universitário Internacional (Uninter) viabilizado pela internet com encontros presenciais. Natal colou grau ontem (29) e começou a formação a distância ao mesmo tempo em que iniciou a graduação em direito no Centro Universitário Euroamericano (Unieuro), em que está no 5º semestre.

“Como sou concurseiro, queria ter logo nível superior. Além disso, o fato de ser tecnólogo pode ajudar a me diferenciar em seleções para estágio”, conta ele, que passou no concurso da Polícia Civil de Goiás para o cargo de agente e está esperando ser convocado. Outra vantagem é que ele começará uma pós-graduação mais cedo. “Eu me matriculei em uma de direito penal.” Analista legislativo na Câmara dos Deputados e advogado, Eduardo se formou como tecnólogo em gestão de serviços jurídicos e notariais no fim de 2016. “Eu quis pegar esse curso como um complemento, para saber mais de serviços cartoriais e notariais. Tinha alguma coisa ou outra em comum com a graduação em direito, mas é uma formação bem diferente, focada em atividade jurídica administrativa”, compara.

Turmas em funcionamento

Rene Ernst/Uninter
O objetivo das aulas é atender demandas da sociedade e dar ao mercado um profissional que estava faltando Débora Veneral, advogada e coordenadora dos cursos jurídicos do Uninter

A formação tecnológica em serviços jurídicos é oferecida na modalidade a distância, em caráter experimental, em três centros universitários no país: Internacional (Uninter), Claretiano e Filadélfia (Unifil). As duas primeiras têm polos no Distrito Federal, já a terceira promove encontros apenas em Londrina (PR). No caso desses estabelecimentos de ensino, não houve problemas para iniciar o curso, pois centros universitários e universidades têm autonomia para lançar graduações sem depender do aval imediato do Ministério da Educação — no entanto, para que os diplomas tenham validade, as capacitações precisam ser reconhecidas pela pasta após a formatura da primeira turma. No caso de faculdades, a questão é um pouco mais complicada: elas são impedidas de iniciar qualquer curso sem a autorização do MEC.

Marcel Thiago de Oliveira, professor e coordenador do curso de tecnologia em serviços jurídicos e notariais do Centro Universitário Claretiano, vê com bons olhos a autorização para abertura de turma em uma faculdade. “A instituição esperava por este posicionamento, que demonstra que o MEC compreende a relevância de cursos nessa área profissional.” Débora Veneral, diretora da Escola Superior de Direito da Uninter e coordenadora do curso de gestão de serviços jurídicos e notariais, observa que a decisão do ministério demonstra que o órgão compreende a importância da formação. A instituição que ela representa foi a primeira a criar uma graduação tecnológica na área em caráter experimental e a primeira a ter alunos graduados. “O objetivo das aulas é atender demandas da sociedade e dar ao mercado um profissional que estava faltando. Muitas vezes, um advogado quer contratar um auxiliar e não encontra ninguém com um conhecimento jurídico mínimo”, justifica. Segundo ela, as formações com essa finalidade têm mais a ver com planejamento do que com direito. “Apesar de os cursos de outros centros não levarem a palavra gestão no nome, seguem a mesma linha. Por isso, os egressos não estariam submetidos à OAB, mas sim ao Conselho de Administração”, diz.

“Serão pessoas que, num escritório, poderão organizar os processos, as finanças, atuar em cartórios, órgãos públicos, sempre nos âmbitos de assessoramento e organizacional”, diz. Leandro Henrique Magalhães, coordenador de Educação a Distância no Unifil, conta que a primeira turma da instituição vai se formar no fim do ano. “É uma capacitação para quem deseja ter conhecimento jurídico, mas não ser advogado. As atividades não se confundem e há espaço para ambos no mercado”, esclarece. Além da Fapan (que recebeu liberação para abrir uma turma na última semana), outras instituições de ensino também solicitaram licença com o objetivo de oferecer o curso tecnólogo em serviços jurídicos. É o caso da Faculdade da Amazônia Ocidental, que protocolou pedido em 2014. A Faculdade Cidade Verde, localizada em Maringá (PR), fez a solicitação em 22 de agosto de 2013 e, desde então, o processo teve muitas idas e vindas. “O Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira) impugnou nosso curso, entramos com recurso. Em seguida, o MEC deu parecer favorável, mas, após consultar a OAB, terminou por não recomendar a abertura. Em julho do ano passado, o CNE deu parecer favorável, mas a portaria não foi publicada até agora”, relata o diretor, José Carlos Barbieri.

Palavra de especialista
Visão de mercado
Apesar de não existir oficialmente no Brasil, a figura do paralegal, por aqui, acaba sendo ocupada por alguém com experiência prática. Às vezes, um bacharel em direito sem carteirinha da OAB ou outro tipo de profissional que ajuda em pesquisas de jurisprudência por exemplo. Acho que o tecnólogo em serviços jurídicos vem bem a calhar com a realidade do mercado, pois é alguém que não rouba o espaço do advogado e ainda faria atividades mais burocráticas e mecânicas. No meu entendimento, estagiários de direito ficariam satisfeitos com isso, pois, assim, poderiam aprender mais sobre a advocacia em si: afinal, ele estuda para isso e não para ser um pesquisador de jurisprudência. Acredito que donos de escritório não terão preconceito em contratar esse tipo de trabalhador. A única coisa que pode ser um problema para essa profissão no futuro é a existência de robôs de pesquisa, que são usados nos Estados Unidos e não demorarão a chegar ao Brasil.

José Paulo Graciotti, consultor com 28 anos de experiência em gestão para escritórios de advocacia, sócio da Graciotti Assessoria Empresarial, membro da International Legal Technology Association (Ilta) e da Association of Legal Administrators (AL)

Em andamento
Confira cursos tecnológicos em serviços jurídicos abertos em centros universitários. Nenhum é reconhecido pelo MEC até o momento

Centro Universitário Internacional (Uninter)
Curso: gestão de serviços jurídicos e notariais — tecnólogo
Modalidade: a distância, com encontros presenciais em todos os polos da rede, inclusive os localizados em Brasília
Carga horária: 1.880 horas/aulas em dois anos
Início: a primeira turma foi iniciada em 2014. Os primeiros alunos se formaram no fim de 2016 e, agora, a instituição solicitou reconhecimento do MEC para o curso. A instituição não informa o número de matriculados nem o de egressos
Saiba mais: www.uninter.com

Centro Universitário Filadélfia
Curso: serviços jurídicos — tecnólogo
Modalidade: a distância, com encontros presenciais em
Londrina (PR)
Carga horária: 1.650 horas/aula em dois anos e meio
Início: a primeira turma, com cerca de 30 alunos, foi iniciada no segundo semestre de 2015; no total, a graduação tem 60 alunos matriculados
Saiba mais: www.unifil.br

Centro Universitário Claretiano
Curso: serviços jurídicos e notariais — tecnólogo
Modalidade: a distância, com encontros presenciais em todos os polos da rede, inclusive no de Taguatinga
Carga horária: 1.600 horas/aula em dois anos
Início: a primeira turma, com mais de 100 alunos, foi iniciada no primeiro semestre deste ano
Saiba mais: www.claretiano.edu.br

Três perguntas para
Claudio Lamachia, presidente nacional da OAB

Breno Fortes

Por que a OAB é contra o curso tecnológico em serviços jurídicos?
A nossa preocupação com o tema não se dá por uma questão corporativa ou de mercado, mas por um compromisso com a qualidade do ensino jurídico. A autorização do MEC para o funcionamento desse curso é um estelionato educacional, pois se está vendendo uma ideia de possibilidade de atividade na advocacia que o aluno não terá condições de exercer. O que eu vejo é que o Ministério da Educação se movimenta muito mais na linha dos interesses dos grandes empresários da área educacional do que valorizando aquilo que é melhor para a sociedade, para o ensino jurídico, para o mercado. Não sei onde tem alunos demandando esse curso. Temos uma proliferação de faculdades de direito no Brasil e grande parte delas não consegue sequer preencher todas as vagas disponíveis. Agora vem o MEC com essa novidade, autorizando o funcionamento de um curso que acabará por aumentar o tensionamento dos estudantes de direito com relação ao mercado de trabalho.

Esse tensionamento seria provocado pela concorrência entre advogados e tecnólogos em serviços jurídicos?
Não, não tem nada a ver com isso. Esse curso vai criar uma subclasse de operadores do direito. O que esse tecnólogo vai fazer? É um engodo. Esses alunos não serão advogados, nem perto disso e não poderão fazer sequer o Exame de Ordem. Tudo isso apenas por interesse econômico dos grupos de ensino.

Que providências a OAB pretende tomar?
Com certeza, vamos judicializar esse tema e também estaremos, possivelmente, entrando com recursos administrativos no âmbito do próprio MEC.

Competência
Sólon Caldas, da Abmes, afirma que a “OAB está fazendo tempestade num copo d’água”, já que a existência de uma figura com formação profissional acessória é comum em outros ramos. “Existe o enfermeiro e o técnico de enfermagem”, exemplifica. Antônio de Araujo Freitas Junior, do CNE, fala das funções da entidade de classe. “A OAB trata do exercício profissional e pode escolher quem pode ser advogado ou não. Já quem cuida de educação é o MEC”, completa. Claudio Lamachia, da OAB, rebate as alegações. “O Estatuto da Advocacia (Lei nº 8906/1994) prevê que a Ordem dos Advogados do Brasil emita parecer opinativo sobre a criação de cursos jurídicos. Então, temos que nos manifestar sobre isso, sim”, diz.

you