Com Novo Fies, governo corta bolsas para reduzir rombo no orçamento

Em: 08 Fevereiro 2018 | Fonte: Gazeta do Povo

Para a família da estudante de arquitetura Isadora de Souza, o Fundo de Financiamento Estudantil (FIES) era a principal alternativa na fila de opções de crédito para arcar com as despesas da faculdade da filha. Mas o risco de perder o benefício no decorrer do curso, a (cada vez maior) lista de requisitos e a burocracia do programa fez com que o crédito subsidiado pelo governo federal fosse descartado.

Para financiar a graduação da filha, os pais de Isadora voltaram suas pesquisas para o mercado de crédito privado. “O Fies, na época, tinha em torno de duas vagas por instituição”, lembra Alessandra de Souza.

Matriculada na Universidade Tuiuti do Paraná (UTP), em Curitiba, desde o primeiro semestre de 2016, Isadora, de 20 anos, tem 50% do valor do curso financiado com a Fundacred, instituição sem fins lucrativos de crédito educacional. Os pagamentos, assim como o FIES, começam no mês seguinte à entrega do diploma. De acordo com as regras do crédito, a família terá o mesmo período do curso (cinco anos, neste caso) para quitar o débito, mas com a vantagem de que o juro do empréstimo é bancado pela universidade.

As parcelas, segundo Alessandra, ficarão no mesmo valor do que é pago hoje: cerca de R$ 700. “Até poderíamos ter optado pelo FIES, mas nossa renda ficou quase no limite do permitido. Qualquer variação no salário poderíamos perder o financiamento”, explica Alessandra.

Exemplo comum
O caso da família de Isadora é comum no Brasil, onde a demanda por ingresso no ensino superior vem aumentando nos últimos anos. E essa prática deve se estabelecer como uma tendência, se depender das novas regras do FIES, que seguem na contramão do caminho de crescimento de jovens atrás de qualificação.

Com inscrições abertas a partir do dia 19, o novo formato do FIES, anunciado pelo presidente Michel Temer no ano passado, deve diminuir sua capacidade financiar o ingresso na universidade. Mais restritivo, até mesmo os mais pobres verão suas chances de financiar os estudos diminuírem. Por outro lado, as novas regras, como o fim do prazo de carência e o desconto das parcelas no contracheque, podem resultar em uma maior sustentabilidade financeira ao programa.

“Não houve avanços significativos [no novo FIES], pelo contrário, permaneceram alguns gargalos que dificultam a ocupação das vagas, como o não financiamento de 100% do valor da mensalidade, existência de cursos prioritários que ocupam 60% das vagas e o cruzamento da renda com a nota exigida no Enem”, analisa Sólon Caldas, diretor executivo da Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino Superior (ABMES).

Segundo o MInistério da Educação (MEC), serão ofertadas 310 mil vagas pelo novo FIES em 2018, sendo 100 mil contratos a juro zero. O número de bolsas fica longe da demanda por universidade privada. Conforme o Censo do Ensino Superior de 2016, foram cerca de 2,4 milhões novas matrículas fora da rede pública. Em um cenário em que todas as vagas do FIES fossem preenchidas, o programa daria conta de apenas 15% da demanda por diploma universitário. Os dados de 2016, no entanto, mostram uma alta taxa de vacância nas bolsas do programa: 37,5% das oportunidades não foram aproveitadas.

A insegurança dos estudantes no FIES pode ser percebida na elevação dos financiamentos fechados por entidades privadas. A Fundacred, que administra o crédito educacional em 130 Instituições de Ensino Superior (IES) no Brasil, teve um crescimento de 37% em 2017. Os estados que mostraram maior procura foram São Paulo, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Sem opção de carência, a Fundacred financia até 75% da graduação do aluno. E, diferentemente do FIES, é possível conseguir o crédito para cursos de Ensino a Distância (EaD).

“Temos a vantagem de conseguir absorver débitos preexistentes e que fizeram com que o aluno abandonasse o curso. Conseguimos incluir uma dívida antiga, zerar essa conta e fazer o estudante ingressar novamente na universidade”, diz Nivio Delgado, diretor superintendente da Fundacred. A inadimplência, segundo a instituição, é de 6,9% para débitos que ultrapassam três meses.

Outra opção de crédito educativo, o PRAVALER também vem crescendo na faixa dos 30% ao ano. E a expectativa para 2018, com a reformulação do FIES e o lançamento de novos produtos, é de alcançar 50% de crescimento. Com um modelo um pouco diferente, a instituição financia a faculdade do estudante semestre a semestre.

Neste caso, o aluno já começa a honrar com 50% dos pagamentos a partir do semestre seguinte à matrícula. De acordo com os dados do PRAVALER, 95% dos estudantes financiados têm renda familiar média de até três salários mínimos, mesmo patamar exigido pelo FIES para conseguir o financiamento de juro zero. “Acabamos absorvendo uma parte dessa demanda [do FIES]”, afirma Rafael Baddini, sócio-diretor do PRAVALER.

É o caso da técnica em nutrição Érica Batista Vilas Boas, que, aos 43 anos, decidiu retornar à rotina acadêmica. Depois de ter encaminhado a vida educacional dos filhos, em 2017, a paulistana ingressou no curso de Nutrição de uma universidade privada de São Paulo. Mas a experiência durou apenas um semestre. O valor salgado da mensalidade fez com que Érica tivesse de trancar os estudos. Para colocar as finanças em ordem, precisou de mais um semestre longe dos estudos. Na busca por alternativas de financiamento, chegou à conclusão de que o FIES não valeria a pena por conta dos juros, que quase dobraram em 2015. “Avaliei a taxa e percebi que não daria conta dos pagamentos”, explica.

A partir deste ano, Erica irá retomar a faculdade de nutrição do zero na Universidade Cidade de São Paulo (UNICID), zona leste de São Paulo. Com o financiamento do PRAVALER, a instituição de ensino irá bancar os juros do crédito. “Sou técnica em nutrição e estou conseguindo dar continuidade na minha carreira”, afirma.

Prioridade é a sustentabilidade financeira
Os financiamentos estudantis, embora comprometam parte da renda dos estudantes após a formatura, poupam o aluno de criar um grande “papagaio” durante a graduação.

De acordo com uma pesquisa anual do Serviço de Proteção ao Crédito (SPC Brasil), que mapeia os principais tipos de contas que levam à inadimplência, o débito de atrasos em mensalidades escolares e de universidades que geraram a negativação de CPFs foi o segundo item que mais cresceu em 2017. A dívida educacional saltou de 9% para 24%, e ficou somente atrás de dívida com cheque especial.

A reformulação do FIES em 2018, se não agradou às universidades e aos estudantes, poderá ter um impacto positivo nas finanças do governo federal. O fim do prazo de carência e o desconto das faturas do débito diretamente na folha de pagamento dos estudante são medidas que, segundo o Planalto, irão diminuir a inadimplência do programa.

Hoje, segundo o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), que faz a operação do FIES, o número de contratos em atraso chega aos 53%. Ao todo, são 253 mil beneficiados que não estão conseguindo honrar os pagamentos. O custo dessa conta para o governo está estimado em R$ 4,7 bilhões.

Uma das maneiras encontradas pela equipe de Michel Temer para tentar diminuir a sangria financeira foi incluir, nas faixas 2 e 3 do financiamento, os bancos privados e o BNDES. As instituições financeiras que aderiram ao programa, todas com autorização do Banco Central para operar linhas de crédito no país, terão liberdade para definir o juro oferecido aos estudantes.

Na prática, o governo federal terceiriza o financiamento e joga parte da responsabilidade no colo dos bancos. Para o primeiro semestre de 2018, irão participar do processo seletivos os bancos Itaú, Bradesco, Banco do Nordeste, Andbank, BV Financeira e Banco Paulista.

Para Sólon Caldas, da ABMES, a entrada das instituições financeiras privadas irá dificultar o acesso de estudantes mais pobres. Segundo ele, a liberação do financiamento ficará restrita a quem atender às exigências de garantias de pagamento dos bancos que, geralmente, são muito mais rígidas do que as adotadas pelo governo.

“É preciso estar atento às taxas de juros que serão cobradas nas modalidades 2 e 3. A tendência é de que elas sejam mais altas do que as cobradas na modalidade 1 do programa. No entanto, por outro lado, passa a existir a possibilidade de o aluno buscar o banco ou instituição financeira conveniado com a sua instituição de ensino, que ofereça melhores condições de financiamento”, analisa Caldas.

Outra medida tomada pelo Planalto é o aumento da contribuição das universidades para o fundo garantidor que cobre as despesas com inadimplência. O fundo, agora, receberá uma contribuição entre 10% e 25% das universidades conveniadas ao FIES. O valor do repasse irá depender do número de alunos inadimplentes que a universidade detém.

Esta mudança gerou um desconforto entre as mantenedoras, o que pode explicar a desvinculação de 131 instituições de ensino do FIES neste primeiro semestre de 2018. Segundo Caldas, as universidades não têm participação na escolha do perfil dos alunos que ingressam via FIES.

“Esses estudantes não selecionados são submetidos ao processo seletivo da Instituição de Ensino Superior (IES) ou a qualquer análise de perfil financeiro por parte da instituição”, explica.

Segundo Paulo Meyer, técnico de planejamento e pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), mesmo com o aumento das contribuições, o fundo não dará conta do volume de inadimplências. “Isso é um problema sério”, alerta o economista.

Falhas de gestão não faltam
Alguns dos vários problemas apresentados pelo FIES estão expostos no Relatório de Auditoria Anual de Contas, divulgado pela Secretaria Federal de Controle Interno, após uma análise dos procedimentos adotados entre o segundo semestre de 2016 e o primeiro de 2017.

A equipe constatou a necessidade de adoção de “medidas corretivas” no que chamou de “fragilidade dos procedimentos de verificação”. No documento, os órgãos de controle interno afirmam que houve, inclusive, a permissão de oferta de vagas por mantenedoras que não cumpriram todos os requisitos estabelecidos pelo programa.

Um dos exemplos da má gestão do FIES é a distribuição de vagas para cursos prioritários. De acordo com o relatório, a área de saúde ultrapassou em 24% o limite de distribuição de contratos. Outras graduações inseridas neste critério, como engenharia e licenciatura, ficaram, respectivamente, com 17% e 15% do número de vagas aquém do previsto no projeto.

Conforme levantamento feito com a Secretaria de Educação Superior do Ministério da Educação (SESu), no segundo semestre de 2017, 40% das vagas do FIES foram direcionadas para os cursos não prioritários; percentual que ficou acima em relação ao período anterior, que foi de 30%.

O relatório aponta que o índice foi aumentado “sem quaisquer critérios de desdobramento”. E o descontrole fez com que os cursos de Direito, Administração e Ciências Contábeis (todos eles considerados não prioritários) ficassem entre os mais financiados pelo programa.

Ainda de acordo com o relatório dos órgão internos de controle, os valores máximos de mensalidade a serem financiados não apareceram nas portarias normativas que tratavam dos processos seletivos. Estranhamente, de 2016 para 2017, ocorreu uma diminuição no teto da cobertura que não respeitou critérios objetivos, como a reposição de inflação, que foi de 6,29% em 2016.

Já no segundo semestre de 2016, o valor máximo a ser financiado era de R$ 7 mil (mensalidade) ou R$ 42 mil (semestralidade). No primeiro semestre de 2017, o valor caiu quase 30%. A mudança, segundo o documento, “sugere a ausência de critérios objetivos para determinação dos valores de teto para financiamento aos estudantes”.

Em uma comparação feita pela equipe de auditoria em sites que oferecem descontos em universidades privadas, foram encontrados, em alguns casos, contratos fechados pelo FIES com valor médio acima do visto nas promoções. Um exemplo: há casos de alunos de Odontologia que fecharam pelo FIES uma mensalidade de R$ 1.952. Nos sites de desconto, porém, é possível encontrar oferta de custo mensal de R$ 976,25. No curso de Direito, foram encontradas diferenças de quase R$ 1 mil.

Essa discrepância, segundo o relatório, gera um sobrepreço de R$ 73,5 milhões, somente no primeiro ano de curso. “Como as bolsas dos sites analisados cobrem toda a duração do curso, esse sobrepreço se estende ao longo de todo o curso, causando prejuízos tanto para a Administração Pública, que subsidia esses financiamentos, quanto para o próprio aluno, cujas prestações refletirão esse valor maior até o término da fase de amortização do financiamento”, diz o documento.

Um novo modelo é possível?
O grave problema financeiro do FIES, somado aos problemas de gestão, faz com que membros da academia se debruçem sobre o tema. É o caso de Paulo Meyer e Gustavo Longo, que publicaram um artigo chamado “Qual o custo implícito do FIES para o contribuinte brasileiro?”. Com base nos cálculos do FIES de 2010 e 2015, a análise mostra que o custo do subsídio ofertado pelo governo ao pagador de impostos chegou a R$ 47 a cada R$ 100 aplicados no FIES, há sete anos. Com as mudanças realizadas em 2015, a estimativa caiu para R$ 27.

“Esse é o dinheiro que o governo coloca nos financiamentos e que nunca será recuperado”, explica Meyer. O cálculo leva em conta a taxa de juros aplicada no FIES, que é abaixo do que o mercado oferece, e a diminui da taxa Selic à época. A taxa básica de juros é utilizada na equação por ser a maneira como as universidades são remuneradas pelo programa. Do FIES, as IES não recebem dinheiro: elas são remuneradas com uma espécie de título do tesouro que pode ser usado no abatimento de impostos.

Como alternativa ao atual modelo, Meyer propõe um FIES que seria regulado por empréstimos com amortizações correspondentes à renda (ECR) - solução apontada pelo Prêmio Nobel Joseph Stiglitz como “a mais eficiente e justa maneira de resolver uma série de questões corriqueiras de restrição de crédito”.

A ECR proposta por Meyer consiste em debitar o valor do financiamento diretamente de sua folha salarial ou por meio de recolhimento do imposto de renda ou contribuições previdenciárias. A vinculação da dívida ao contracheque e aos compromissos com a Receita Federal geraria uma segurança maior da recuperação do dinheiro.

A grande diferença da ECR para o modelo atual é que o tempo para quitação do débito não se restringiria a um período específico. Em um dos cenários propostos por Meyer, a amortização seria alongada até o início da aposentadoria do estudante, se necessário. E o desconto só ocorreria caso o graduado tivesse, de fato, uma renda para poder arcar com a despesa. Em vez de concentrar os gastos nos primeiros anos da vida profissional pós-formatura, os pagamentos seriam diluídos por tempo indeterminado.

“Os inadimplentes apresentam baixo rendimento justamente durante a parte de suas vidas produtivas em que vencem as parcelas dos seus financiamentos estudantis”, diz Meyer. “Se o padrão de renda dessas pessoas se elevar ao longo da vida, o governo poderá recuperar maiores proporções dos recursos emprestados. Não havendo subsídios adicionais implícitos no desenho do programa, o sistema se mostrará autofinanciável”, conclui.

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